Quando ela nasceu, eu estava esperando um irmãozinho. Talvez seja por isso que não gostei dela logo de início.  Na verdade “não gostar” é um eufemismo. Quando crianças brigávamos tanto que nossa mãe nos chamava ora de “Irã” e “Iraque”, ora de “Caim” e “Abel”. Naturalmente, eu era o Iraque e Caim pois, como toda irmã mais velha, eu detestava minha irmã mais nova. Ainda hoje minha consciência pesa quando penso nisso. Não que eu fosse extremamente malvada com ela, mas eu estava convencida que minha irmãzinha era a criatura mais chata, grudenta, imitona, mentirosa e desagradável do universo. Ela, como toda irmã mais nova, me admirava e queria fazer tudo que eu fizesse. Quanto mais eu a rejeitava, mais ela grudava em mim, o que me irritava profundamente e acabava inevitavelmente em pancada. Um dos momentos mais gloriosos da nossa infância foi quando, depois de uma briga ferrenha entre nós, nossa mãe nos puniu com uma surra embaixo do chuveiro. Apanhar pelada e molhada é bastante desagradável, mas graças ao estranho método de educação infantil utilisado pela minha mãe (Piaget? Paulo Freire?) a coisa ficou ainda pior quando ela disse que só pararia se a gente dissesse que se amava e trocasse abraços e beijos. Peladas e molhadas. Minha irmã me agarrou imediatamente e repetiu várias vézes “Eu te amo, Sandra!”. Eu não mexi nem um dedo e pensei “Prefiro apanhar.” Eu realmente detestava a minha irmã.

Felizmente eu fui melhorando com o passar dos anos. Essa foto foi tirada quinze anos atrás, quando meu desafeto por Lu começou a se desfazer. Repare na meiguice da minha irmã aos 12 anos. Seu olhar transpira bondade, doçura e obediência. E o que dizer dessas mãozinhas sobre o colo, então? Eu, por outro lado… Sorriso forçado, mangas arregaçadas e Quasímodo nos braços: o que passava pela minha cabeça, meu Deus? Gostaria de explicar, no entanto, que o cabelo tingido de preto-asa-de-urubu foi um acidente. Eu queria ser ruiva e saí do cabelereiro com um jerimum na cabeça. Voltei depois de ter passado 48 horas chorando no chão da cozinha enquanto minha mãe repetia “Eu não falei pra você não pintar o cabelo?!” e a única maneira de me livrar do jerimum foi pintar tudo de preto. Ser a sósia da Maga Patalógica por alguns meses me traumatizou tanto que nunca mais pintei o cabelo.

Os anos da adolescência são lembrados de maneiras diferentes por nós. Enquanto eu acho que me transformei em irmã boazinha de uma hora pra outra, Lu insiste em dizer que eu continuava malvada, mas de uma maneira diferente. A gente já não se batia mais, porém ela limpava sozinha nosso quarto, arrumava meus pertences e ajudava minha mãe nos trabalhos domésticos duas vezes mais que eu. Bastava eu dizer “Detesto quarto desarrumado!” pra minha irmã dar um fim na (minha) bagunça. Eu comecei a trabalhar muito cedo e minha irmã ajudava sozinha minha mãe à manter a casa em ordem. Mas tirando essa exploração, e as poucas vezes em que tentei manter contato com o espírito de Renato Russo só pra aterrorizar minha irmã (ela morria de medo de fantasmas), eu me tornei uma irmã quase perfeita. Quase, porque toda noite, quando nos encontrávamos depois de um longo dia de trabalho e escola, eu desatava a falar sobre o meu dia pra Lu, mas se ela tentasse dizer o que tinha feito durante as últimas doze horas eu dizia “Cala a boca que eu quero dormir”. Pra obrigá-la à me perdoar eu sempre voltava pra casa com um chocolate pois ela, diferente de mim, adora chocolate. Um dia um hóspede do albergue onde eu trabalhava me presenteou com quatro barras de chocolate. Eu fui pra casa pensando o tempo todo na cara de felicidade que ela ia fazer quando eu desse o presente pra ela. Quando fui estudar na França e comecei a viajar pela Europa, em cada país que eu visitava eu comprava um presentinho pra ela. Lembro que uma vez passei metade de um dia vasculhando o Grande Bazar de Istambul à procura de um brinco digno da princesa Sherazade pra minha irmã. Depois que fui morar longe dela, percebi o quanto ela era especial e tentei me redimir dos anos de malvadeza.

Lu teve uma fase em que era apaixonada pelo príncipe Williams, que ela chamava carinhosamente de “Will”(na época ele ainda não sofria de calvice nem era noivo). Então na primeira vez que fui à Londres comprei um cartão postal com a foto dele e escrevi, em Inglês, algo como “Querida Lu, acabo de tomar o chá das cinco com sua adorável irmã. Espero que da próxima vez você venha com ela. Estou te esperando em Buckingham. Will” e enviei pra ela. Depois de ter desistido de Will, ela se apaixonou perdidamente por Zeca Baleiro. Eu fui a um show dele em Paris e fiquei três horas esperando na porta do camarim pra conseguir um autógrafo pra ela. Quando finalmente consegui entrar eu disse “Zeca, você é o homem da vida da minha irmã”. Ele riu e assinou “Pra Lu, um beijo com approach”. Infelizmente ela nunca recebeu o autógrafo (culpa dos correios), mas o que vale é a intenção.

Minha irmã mudou muito. A criança dócil e medrosa se transformou em uma mulher generosa, enérgica e às vezes… bem, Lu tem uma característica que não consigo traduzir em uma palavra. Ela tem o dom de dizer coisas que deixam as pessoas chateadas ou sem graça, num tom como quem diz “Acho que vai chover” e sem se dar conta do despropósito. Muitos anos atrás, durante uma reunião de família, nosso tio que só tem um braço pediu um palito e ela propôs, toda sorrisos, fio dental. Quando, depois de uma longa separação, nos encontramos em Londres (ela vindo dos EUA, eu da Palestina) eu corri em sua direção com os braços abertos e gritando “Luuuuuuuu!”. Ela me olhou dos pés à cabeça e disse “Por que você está usando uma blusa de homeless?” Ela continuava a mesma, mas tinha aprendido a dizer seus despropósitos em Inglês. Durante essas férias, as únicas que passamos juntas, só nós duas, relembramos os tempos de Caim e Abel. Uma noite passei horas na cozinha preparando um prato tailandês e quando ela deu a primeira colherada disse “Que gostinho de pinho sol!”. Quando eu me ofendi e disse que aquilo era uma falta de delicadeza (e excesso de capim santo) ela tentou remendar dizendo que queria dizer que a sopa era “refrescante”. Quando comecei a namorar um norueguês e disse “Lu, estou apaixonada!” ela respondeu “Que droga, Sandra! Por que não aconteceu comigo? Eu aqui sozinha e você nem de homem gosta!”. Claro que ela fica feliz por mim, mas geralmente só depois de jogar o balde da água gelada na minha cabeça. Acho que ela tenta se vingar de tudo que fiz com ela durante a infância.

As fotos acima foram feitas durante as famosas férias em Londres, mais de dois anos atrás. Lu voltou pra Natal, perdeu as “curvas” que ganhou nos States e seus cabelos voltaram a ser castanhos. Hoje eu adoro minha irmã mais do que tudo, mas a gente ainda se desentende de vez em quando. Segundo ela é porque “dois bicudos não se beijam”. Vejo muitos dos meus defeitos e qualidades nela, mas ao mesmo tempo somos tão diferentes. Lu é mais bonita, mais alta, mais sorridente, mais extrovertida e mais sociável. Ela tem mais cabelo, mais peito e mais amigos do que eu, detalhe que ela sempre faz questão de me lembrar. Eu me preocupo com ela porque, enquanto as pessoas vêem sempre uma mulher decidida, eu às vezes consigo enxergar a menininha medrosa que não tinha coragem de subir nas árvores. Sinto que, sendo a irmã mais velha, meu dever de ajudá-la não vai terminar nunca.

Resolvi escrever esse texto porque Lu fez 27 anos essa semana. Esse foi o nono ano em que não pude estar com ela durante seu aniversário. Ela merece o melhor presente do mundo, mas terá que se contentar com essas linhas. Também passei a tarde na cozinha fazendo trufas de bolo pra ela (que usei pra escrever seu nome lá em cima) mas a receita aparecerá aqui depois.

Eu amo minha irmã mais do que amo minha própria vida e se ela desaparecesse dessa terra faltaria oxigênio nos meus pulmões. Plagiando o homem da sua vida, gostaria de dizer que por ela toda dor eu aguento, vou até Bagdá num jumento, volto pra Natal num fuscão. Feliz aniversário, Lulu.

Olha o que fiz pra você!